Em Pssica, não é só o calor de Belém que aperta o peito. É a violência, a ausência de horizonte, o cheiro de rio misturado com sangue, a juventude roubada. A nova minissérie brasileira da Netflix, dirigida por Fernando Meirelles e seu filho Quico Meirelles, é um mergulho cru na tragédia amazônica, contada sem filtro, sem piedade e sem trégua.
Com apenas quatro episódios, a série parece simples na forma — mas o queimaço vem de dentro. O título, uma gíria paraense que significa “azar” ou “maldição”, resume bem a experiência: assistir Pssica é como carregar nas costas uma corrente invisível que aperta mais a cada minuto.
O peso do destino e da paisagem
A série abre com sol na cara e tristeza no olhar. Janalice (Domithila Cattete), uma adolescente que sofre uma violência simbólica e literal logo nos primeiros minutos, é lançada em um redemoinho de abusos, abandono e brutalidade que beira o insuportável. A câmera não vira o rosto. A gente também não consegue.
Enquanto isso, o jovem Preá (Lucas Galvino) tenta sobreviver no mundo do crime sem virar monstro — uma tarefa cada vez mais impossível. Mariangel (Marleyda Soto), em outra margem, busca dar dignidade ao filho gay numa região onde homofobia é mais forte que a correnteza.
Três histórias distintas, mas ligadas por uma coisa: a pssica, essa entidade invisível que paira sobre os corpos, as escolhas e os rios. Mais que título, é uma filosofia do caos.
Direção dupla, olhar unificado
Fernando e Quico Meirelles alternam juventude e experiência, caos e contemplação. Quico traz a energia, os gestos largos no set; Fernando, o silêncio entre uma ação e outra. Juntos, filmam a Amazônia com uma lente de urgência.
Belém não é só pano de fundo. É protagonista. A série desfila pelas ruas quentes, pelos igarapés sombrios, pelas embarcações labirínticas como quem já nasceu ali. Não há exotismo, não há glamour turístico. Há suor, há ódio, há gente tentando respirar.
A fotografia quente, saturada, mistura realismo social com ecos de delírio febril. O calor aqui não é climático — é narrativo. Ele gruda, incomoda, não te deixa escapar.
Trama, ritmo e escuridão
Pssica aposta na escuridão como estética e conteúdo. Cada episódio é denso, como se você estivesse afundando em lama enquanto ouve gritos abafados de socorro.
Não há espaço para otimismo fácil. A série coloca seus personagens em situações extremas e parece perguntar: “até onde você vai pra sobreviver?”. A resposta, quase sempre, é triste.
Mas, curiosamente, nunca é gratuita. Há um senso de urgência moral na série. O tráfico humano, a exploração sexual, o machismo estrutural, a homofobia — tudo está ali não como recurso dramático barato, mas como denúncia implícita de um Brasil que insiste em ser ignorado.
Destaques e simbolismos
A atuação de Domithila Cattete é o coração pulsante da série. Sua Janalice alterna fragilidade e fúria com uma entrega física e emocional rara. Lucas Galvino também brilha ao dar camadas a um personagem que poderia ser só um estereótipo. Marleyda Soto emociona com pouco, no papel mais silencioso dos três.
Mas é Dionette (Ademara) quem rouba a cena. Uma adolescente de rua com alma de justiceira, que transita entre a inocência e a brutalidade com carisma e ferocidade. Ela é um dos poucos sopros de humanidade em um mundo desumanizado.
A série brinca com o realismo mágico sem nunca mergulhar de cabeça. A palavra “pssica” sussurrada em momentos-chave cria um clima sobrenatural sutil — um lembrete de que existe algo maior, mais antigo e mais cruel regendo aquelas vidas.
Pra quem é (e pra quem não é)
Se você procura conforto, fuja.
Se você quer final feliz, esquece.
Se você quer entender o Brasil além da Faria Lima, sente-se e assista.
Mas se prepare: Pssica vai te machucar.
Não porque é “gore”, não porque é violenta no sentido hollywoodiano, mas porque é real demais.
Ela mostra meninas sequestradas não por monstros, mas por tios.
Mostra a polícia agindo não com justiça, mas com omissão.
Mostra que o inferno não é sobrenatural — é cotidiano.
Vale a pena?
Sim. Mas com ressalvas.
Pssica exige do espectador algo raro no entretenimento atual: disposição para se incomodar. Ela não segura sua mão. Não explica tudo. Não recompensa o sofrimento com catarse.
Mas também não é só tragédia. Há beleza na direção, potência nas atuações, verdade no sotaque. E há coragem. Em um cenário audiovisual onde muita coisa é feita pra agradar, Pssica escolhe o caminho oposto: ela desagrada para provocar.
Nota: ★★★★☆
Quente, sufocante e brutal — Pssica é um soco no estômago disfarçado de minissérie. Não é perfeita: o ritmo oscila, alguns diálogos soam artificiais, e certos momentos pesam a mão. Mas nada disso apaga o impacto da obra.
Fernando e Quico Meirelles entregam um retrato feroz de uma realidade ignorada — e fazem isso com cinema de verdade, daqueles que não querem te entreter, mas te confrontar.
Se você aguentar, assista. Se não aguentar, saiba que essa também é parte da mensagem.