Quem disse que road-movie só serve para adolescentes fugindo de casa ou casais em crise? Gabriel Mascaro, diretor de Boi Neon e Divino Amor, resolveu subverter a fórmula com O Último Azul, um coming-of-age distópico da terceira idade. Sim, você leu certo: aqui, quem busca liberdade e amadurecimento não é um jovem de vinte anos, mas uma mulher de 77 anos que se recusa a aceitar a aposentadoria compulsória imposta por um governo que vende discurso de cuidado, mas entrega autoritarismo embalado em jingles patrióticos.
Não à toa, o filme saiu premiado no Festival de Berlim 2025, levando o Urso de Prata e ainda dois prêmios paralelos. E fica claro por quê: O Último Azul é um daqueles filmes que tanto incomodam quanto encantam.
A distopia amazônica de Mascaro
O filme abre com uma cena tão irônica quanto perturbadora: um monomotor sobrevoa uma cidade amazônica industrializada, carregando nos alto-falantes uma propaganda de governo que anuncia, em tom festivo, a criação de uma “Colônia para idosos”. Segundo a narrativa oficial, trata-se de uma forma de “homenagear” todos com mais de 75 anos, oferecendo-lhes descanso e segurança.
Na prática, é um sistema de segregação. Uma sociedade em que velhos são tratados como peso morto, removidos do convívio, empacotados em um espaço “especial” para não incomodar a juventude produtiva.
É nesse contexto que conhecemos Tereza (Denise Weinberg), uma operária que se recusa a ser empurrada para a Colônia. Ela não quer parar de trabalhar, não quer ser tratada como inválida e, acima de tudo, não quer ter sua vontade sequestrada pelo Estado.
A distopia de Mascaro incomoda porque é plausível demais: um mundo onde envelhecer vira quase um crime contra a economia.
Uma heroína improvável em busca de um sonho simples
O que Tereza quer não é riqueza, vingança ou imortalidade. Seu desejo é simples e infantil: voar de avião.
Esse sonho adiado vira metáfora central do filme. Uma mulher que passou a vida inteira sendo útil, mas nunca livre, decide gastar suas últimas forças para experimentar a sensação de sair do chão. É aí que o road-movie fluvial se desenrola: uma jornada pelos rios amazônicos, cheia de encontros com personagens tão deslocados quanto ela.
Cada figura que cruza seu caminho é um reflexo de resistência ou resignação. Gente que, como Tereza, carrega marcas de uma sociedade que prefere calar desejos em nome da ordem.
Entre o real e o fantástico: caracóis azuis e paisagens desbotadas
Visualmente, O Último Azul é um espetáculo contraditório. De um lado, a exuberância da floresta, cheia de cores vibrantes; do outro, as áreas industriais, desbotadas, cinzentas, sufocantes. Essa alternância reforça a ideia de que o Brasil mostrado por Mascaro é um lugar entre o sonho e a ruína.
No meio disso tudo, surge o elemento fantástico: um caracol de baba azul. Símbolo onírico, metáfora aberta, ou apenas uma estranheza para lembrar que, mesmo na velhice, ainda é possível inventar fantasia.
A trilha sonora segue o mesmo espírito. Sons eletrônicos artificiais se misturam a batidas quase de relógio, lembrando o espectador do tempo que passa — e da urgência de Tereza em não desperdiçá-lo. É vintage e futurista ao mesmo tempo, como se Tangerine Dream tivesse se perdido na Amazônia.
Denise Weinberg: performance de entrega absoluta
No centro do filme está a atuação monumental de Denise Weinberg. Sua Tereza não é caricata, não é santificada e não é vítima passiva. É uma mulher que sabe o que quer, mesmo quando o mundo inteiro insiste em lhe dizer o contrário.
Weinberg entrega fragilidade e força na mesma medida. Seu olhar de curiosidade ao falar de voar contrasta com a dureza de alguém que nunca teve escolha. É dessas atuações que poderiam muito bem render prêmios em qualquer festival do mundo.
Premiações e impacto político
Na 75ª edição do Festival de Berlim, O Último Azul levou o Urso de Prata e ainda conquistou o Prêmio do Júri Ecumênico e o Prêmio dos Leitores do Berliner Morgenpost.
Isso não é só reconhecimento artístico, mas político. O filme ecoa críticas a sistemas de exclusão e à naturalização de discursos que parecem benevolentes, mas escondem coerção. Em um mundo que envelhece rapidamente, O Último Azul cutuca um vespeiro global: quem decide o valor de uma vida?
Um coming-of-age na terceira idade
Talvez o maior trunfo de Mascaro seja subverter o próprio conceito de coming-of-age. Normalmente, associamos esse termo a jovens descobrindo o mundo. Aqui, o amadurecimento acontece no final da vida, provando que sempre é tempo de recomeçar.
O título do filme é simbólico: “azul” como o céu que Tereza quer tocar, “último” como a noção de finitude que paira sobre cada frame. É uma obra sobre desejo, resistência e liberdade tardia.
O veredito
O Último Azul é cinema para incomodar e emocionar ao mesmo tempo.
Mascaro entrega um filme que é distopia, manifesto político e fábula poética. É difícil, incômodo, mas também belo e necessário.
Não é para todo mundo — os impacientes vão achar lento, os cínicos vão dizer que é pretensioso. Mas quem se permitir embarcar no voo de Tereza vai encontrar um dos filmes mais originais e corajosos do ano.
No fim das contas, a mensagem é clara: a vida começa quando o sonho é sonhado, não importa a idade.