Se havia um desejo coletivo entre os fãs da franquia Alien, era voltar à sensação primal do primeiro filme: corredores escuros, suor frio, um inimigo perfeito escondido nas sombras — e a certeza de que ninguém está a salvo. Alien: Romulus, de Fede Álvarez, mira precisamente nesse sentimento. Em vez de teorias cósmicas ou épicos de colonização, o filme reduz tudo ao essencial: gente presa em um lugar hostil, uma criatura imparável e um relógio dramático que não para de correr. O resultado é um exercício de suspense enxuto, pegajoso e sombriamente divertido, que recoloca a série nos trilhos do horror de câmara.
Ambientado entre os eventos de Alien (1979) e Aliens (1986), Romulus tem um pé na tradição e outro na atualização: honra a “casa mal-assombrada no espaço” de Ridley Scott, mas injeta um elenco jovem, relações quase familiares e efeitos práticos que você sente na pele. Para além da cronologia, o filme se apoia numa ideia simples: quando o ambiente é crível, gasto, cheio de cicatrizes, a ameaça fica mais real — e o medo, mais próximo.
Onde o medo mora: a volta ao “assombro industrial”
A principal força de Romulus está no mundo físico que ele constrói. A estação espacial — dividida em dois módulos batizados de Romulus e Remus — não parece um set esterilizado, mas um lugar que já foi vivido e morreu antes da chegada da turma protagonista. Canos suando, portas emperradas, luzes que piscam no ritmo errado… Tudo comunica risco. Esse design de produção (de Naaman Marshall) é daqueles que contam história por si só e ajudam a suspender a descrença: se o cenário é palpável, o perigo também é. A fotografia de Galo Olivares e a montagem de Jake Roberts empilham essa sensação com enquadramentos justos, textura suja e cortes que apertam o pulmão.
Álvarez sabe encenar tensão. Há pelo menos três set pieces que devem entrar na memória da franquia:
a corrida de corredor com uma “ninhada” de Facehuggers;
a sequência do elevador, milimetricamente planejada para esgarçar nervos;
e um ato final ousado (e potencialmente divisivo) que abraça o body horror sem pudor.
É aqui que Romulus mostra compreensão do legado sem soar derivativo: o perigo é físico, o espaço é um inimigo, e o Xenomorfo é um predador elegante a serviço do pesadelo.
Tripulação jovem, pavor antigo
Uma das apostas de Álvarez foi colocar protagonistas mais jovens no centro da narrativa — colonizadores de baixa extração tentando furar o destino em um planeta-mina sem sol. Essa escolha não é mero capricho: juventude implica inexperiência, e inexperiência amplifica o medo. O grupo não tem a frieza de veteranos espaciais; tem planos meio tortos e impulsos de sobrevivência, o que torna cada decisão mais perigosa. A dinâmica lembra irmãos de ocasião, laços frágeis que se fazem e desfazem sob pressão — um aceno temático ao mito de Rômulo e Remo que batiza a estação.
No centro está Rain Carradine (Cailee Spaeny), uma trabalhadora que descobre que os “marcadores de saída” do sistema sempre podem ser movidos contra ela. Empurrada pela exploração corporativa, Rain se agarra a uma chance de fuga: invadir uma estação que paira acima do planeta para roubar cápsulas criogênicas e desaparecer em outra galáxia. O plano é simples — e tudo que pode dar errado, dá. A presença da Weyland-Yutani na equação garante que “o lucro” sempre tenha a última palavra.
Androides também sonham com família?
A franquia Alien sempre usou sintéticos para cutucar questões morais espinhosas, e Romulus dá continuidade com Andy (David Jonsson). Programado para cuidar de Rain “como um irmão”, ele puxa a história para um território afetivo raro em filmes de monstro: uma família escolhida tentando se manter inteira enquanto o mundo desaba. A cada nova sala aberta na estação, o objetivo de Andy muda, tensionando o que é código e o que é emoção — e Jonsson traduz isso com nuances que passam pelo olhar, pela microexpressão, pelo tempo de resposta. É, facilmente, um dos melhores arcos de personagem do filme.
O restante da equipe — Archie Renaux, Isabela Merced, Spike Fearn e Aileen Wu — dá corpo à sensação de “estamos no mesmo barco furado” que a série precisa para funcionar. É um elenco pensado para o choque de realismo: ninguém aqui é super-herói; são operadores de risco abatíveis.
Terror, suor e graxa: a gramática de Álvarez
Fede Álvarez, que já tinha provado domínio do suspense físico em Evil Dead (2013) e Não Respires (2016), ajusta a chave para o horror industrial. Ele devolve à franquia a sensação tátil do perigo — muco, fios, metais cortantes, portas que mastigam. Além disso, o diretor insiste em efeitos práticos e animatrônicos sempre que possível, inclusive com veteranos da equipe original, o que dá peso e presença ao Xenomorfo e às suas “fases” (Facehugger/Chestburster). Essa decisão foi traço de estilo assumido na divulgação, e o filme cumpre o prometido: quase dá para cheirar a sala.
Essa materialidade encontra apoio na trilha de Benjamin Wallfisch, que sabe quando calar para deixar o design de som e os estalos do cenário falarem — e quando crescer para esmagar a plateia junto com os personagens. Em paralelo, a decupagem de Jake Roberts (Hell or High Water) desenha perigos no quadro, em vez de depender de sustos fáceis fora de campo. É artesanato de terror.
Referências sim — muletas, não
Romulus brinca com ecos da franquia inteira: do terror minimalista de Alien ao surto bio-mecânico de ideias que rondaram Alien 3 (inclusive o roteiro não filmado de William Gibson), passando por sinais dos prólogos filosóficos de Prometheus/Covenant. Em alguns momentos, o aceno vira excesso de referência — o tipo de piscadela que você identifica à distância e, por isso, tira um pouco do mistério. Ainda assim, o filme não precisa dessas cartinhas para funcionar: quando está só com giz, escuro e respirações, é o Alien que muitos pediam havia décadas.
Cronologia: afinal, onde Romulus se encaixa?
Se você gosta de organizar a estante, Romulus foi oficialmente colocado entre Alien (1979) e Aliens (1986). O próprio Álvarez explicou que a ideia era habitar a lacuna de décadas entre os dois, sem interferir no que já sabemos das personagens clássicas. Em guias recentes de cronologia da franquia, a ordem sugerida coloca Romuluslogo após Alien e antes de Aliens — e muito, muito antes dos desdobramentos de Alien 3 e Resurrection.
Esse posicionamento permite um respiro criativo: dá para evitar paradoxos e, ao mesmo tempo, plantar conspirações que conversam com a Weyland-Yutani e sua ética de laboratório (ou falta dela). Em outras palavras: tem lore bastante para nutrir teorias sem bagunçar o cânone emocional da série.
Recepção e bilheteria: o apetite segue intacto
O público respondeu: Alien: Romulussuperou expectativas nas primeiras semanas e ultrapassou a marca de US$ 100 milhões no mundo logo no arranque, ficando acima de projeções conservadoras e roubando a cena no fim de semana de estreia. O boca a boca celebrou justamente o que o filme prometia entregar: tensão, gosma e um Xenomorfo com dentes demais.
Na crítica, a leitura predominante foi a de um retorno competente às raízes, ainda que menos ambicioso do que os prequels. A comparação mais recorrente: Romulusdiverte e sufoca, mas não mira as grandes perguntas metafísicas — e tudo bem. Nem toda visita ao pesadelo precisa trazer um tratado de filosofia junto da lâmina.
Performances: corpos em risco, olhos que contam história
A franquia Alien sempre dependeu de atuações que aterrassem o extraordinário. Cailee Spaeny (Rain) faz um trabalho físico e contido, evitando histeria e privilegiando a competência angustiada de quem já “fez o trampo” sob pressão. David Jonsson (Andy) assume o holofote nos momentos dramáticos — seu arco de escolhas é o motor emocional mais interessante do filme e uma evolução legal do uso de androides na série. O resto da equipe cumpre a promessa de humanidade falível: quando eles sangram, a gente acredita.
Temas sob a carapaça
Romulus não faz discurso, mas deixa camadas visíveis para quem quiser enxergar:
Exploração corporativa: a Weyland-Yutani “move as traves” sempre que convém, e vidas viram linha de orçamento.
Família escolhida: a relação Rain–Andy reposiciona a velha pergunta “o que nos faz humanos?”; às vezes, é cuidado, não DNA.
Sobrevivência vs. solidariedade: quando o pânico entra, quem você sacrifica? O filme não romantiza decisões feias — e isso o aproxima da honestidade cruel do original.
E agora? Um futuro a ser forjado (com cautela)
Sem entrar em spoilers, Romulus fecha o suficiente para satisfazer e abre frestas para continuar. O próprio Álvarez já comentou que há ideias claras sobre para onde ir numa possível sequência. É o tipo de conversa que anima, desde que a franquia mantenha a régua de tensão e a matéria-prima prática que funcionaram tão bem aqui.
Veredicto: quando o simples é o que mais assusta
Alien: Romulus não tenta reinventar o Xenomorfo — e esse é o seu trunfo. Ao limpar o palco e apostar em espaços críveis, efeitos palpáveis e protagonistas vulneráveis, Fede Álvarez entrega um Alien que respira Alien: claustrofóbico, pegajoso, implacável. Há momentos de fan service que poderiam ser podados? Sim. Mas quando o filme está focado no que importa — um organismo perfeito caçando em um labirinto de metal — ele atinge aquele patamar raro: o de fazer você esquecer o encosto da poltrona.
Se você queria voltar a sentir medo do escuro no espaço, missão cumprida. E, se a franquia aprender a dosar referências e ousadias, há um horizonte de pesadelos ainda muito promissor pela frente.