A Longa Marcha: Stephen King transforma resistência física em pesadelo existencial

Antes de se tornar o “mestre do terror” de capas sangrentas nas livrarias, Stephen King já experimentava outros monstros: os da política, da guerra e da juventude consumida como espetáculo. Sob o pseudônimo Richard Bachman, ele escreveu distopias cruéis como A Dança da Morte, O Concorrente (The Running Man) e, claro, A Longa Marcha. Agora, em 2025, o livro finalmente ganha vida no cinema pelas mãos de Francis Lawrence (Jogos Vorazes), provando que o horror pode ser menos sobre fantasmas e mais sobre a perversidade de regimes e plateias.

E prepare as panturrilhas: este não é um filme sobre chegar a algum lugar, mas sobre continuar andando até cair morto.


A premissa: simples, cruel, inevitável

Num passado alternativo dos anos 1970, cinquenta adolescentes são escolhidos para participar de uma marcha sem fim. A regra: caminhar a pelo menos 5 km/h sem parar. Quem desacelera recebe avisos. Três avisos, e soldados de fuzil em punho executam o competidor ali mesmo, na estrada, diante da multidão.

Não há linha de chegada. Só existe um vencedor: o último que sobrar.


Direção: Francis Lawrence repete a distopia, mas agora sem glamour

Depois de quatro Jogos Vorazes, Lawrence domina a fórmula: jovens em jogos mortais, enquadrados em panoramas distópicos. Só que aqui não há arcos de redenção ou revoltas heroicas. O que existe é estrada, suor, câimbras e sangue.

A fotografia de Jo Williams mantém os garotos num purgatório eterno, uma estrada que parece nunca terminar. Cada passo ecoa mais vazio que o anterior. É a monotonia como ferramenta de terror.


O elenco: amizade contra o abismo

Apesar de cinquenta competidores, o foco recai sobre alguns:

  • Ray Garraty (Cooper Hoffman), o sensível que tenta manter um fio de humanidade.

  • McVries (David Jonsson), otimista e magnético, parceiro improvável de Garraty.

  • Olson (Ben Wang), o alívio cômico com língua afiada.

  • Barkovitch (Charlie Plummer), o vilãozinho que prefere sabotar colegas.

A química entre Hoffman e Jonsson sustenta o filme. É na amizade improvável deles que o público encontra algum respiro em meio à carnificina. O resto, como no livro, são vozes que desaparecem na poeira da estrada — o que pode frustrar quem espera conexões mais profundas.


Horror sem fantasmas: o corpo como campo de batalha

The Long Walk não é terror de aparições. É terror do corpo humano em colapso.

  • Pés ensanguentados, tornozelos quebrados que ainda precisam se mover.

  • Crianças implorando pelas mães antes de serem fuziladas.

  • Barrigas que não seguram mais nada, forçando marchas encharcadas de humilhação.

A violência é gráfica, com direito a crânios explodindo em tela, mas o real horror está no psicológico: assistir adolescentes sendo transformados em espetáculo de morte enquanto o público aplaude.

Não por acaso, King escreveu o livro no eco do Vietnã. A metáfora é clara: jovens sacrificados em nome de uma bandeira, de ordens militares e da distração televisiva.


O problema: foco demais em poucos, peso de menos nos outros

A escolha de privilegiar Garraty e McVries gera emoção, mas cobra seu preço. Quando outros competidores caem, o impacto é pequeno: nunca tivemos tempo de conhecê-los. O resultado é desigual — momentos de intimidade comoventes entre os protagonistas contrastam com mortes que soam descartáveis.

Ainda assim, a brutalidade das execuções e o ciclo infinito de resistência mantêm o filme perturbador.


A Longa Marcha é para quem?

  • Vai curtir:

    • Fãs de Stephen King que gostam do lado distópico, mais cruel que sobrenatural.

    • Quem se impressionou com Jogos Vorazes, mas queria algo mais niilista.

    • Amantes de metáforas políticas enfiadas em narrativas sangrentas.

  • Vai odiar:

    • Quem espera finais edificantes ou catarse heroica.

    • Quem não aguenta ritmo metódico e repetitivo.

    • Quem busca sustos tradicionais em vez de tensão psicológica.


O veredito

A Longa Marcha é um filme cruel, lento e devastador — exatamente como deveria ser. Francis Lawrence não busca ação vibrante, mas sim transformar monotonia em suspense e fadiga em terror.

Não é para todo mundo. Muitos vão achar arrastado (sem trocadilho). Mas quem embarcar no passo firme da narrativa vai encontrar um dos retratos mais perturbadores da crueldade institucionalizada — e da humanidade tentando resistir passo após passo.

Compartilher este post:

Facebook
WhatsApp
LinkedIn
ahshow - tudo sober filmes e séries